quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A CHEGADA AO NOVO MUNDO


Nenhum daqueles locais se prestava a um desembarque útil, de forma a avançar para o hinterland. Contudo, passada uma meia hora, acabaram por fazê-lo, à falta de melhor alternativa. O capitão decidiu tentar a sua sorte, ao aparecimento da primeira praia: uma pequena concha (a imagem sempre presente da sua concepção cosmológica...), como um bivalve lamelibrânqueo incrustado na rocha, levemente inclinado para diante, que tinha o ar apetecível dum oásis no deserto. O deserto era todo o resto da costa; o paraíso deveria ser lá cima, no meio das terras, conquanto se apresentasse tão emaranhado e tão espesso - onde apenas se distinguiam aquelas árvores singulares -, que poderia transformar-se num inferno verde e sufocante, nunca imaginado. Tomou assento num batel, com mais quatro dos seus e o biologista, e pouco depois saltavam em terra. Assim feito, ensaiaram o ritual antigo, dando graças ao oiro do Sol, por terem chegado; mas a cerimónia desluziu-se na exiguidade da pequena concha de areia. Logo ficou claro que era impossível subir por ali acima, pela garganta delgada que levava ao topo das rochas, donde escorria um fino veio de água.. Mas dela beberam deliciados, no melhor sabor de Sócrates, estonteados de ter os pés em terra, após tantos dias do balanço dos mares. E por aí se ficaram. Nem era possível fazer aguada, pela insuficiência do veio de água e mormente pela dificuldade em manobrar pipas ou tonéis, naquele lugar.
em A FEBRE DO OURO, Pág 43

sábado, 6 de setembro de 2014

DOCUMENTÀRIO "AO VIVO"


Entretanto, a convicção generalizada (o secreto desejo, mais propriamente...) era de que se iria presenciar um espectacular documentário, ao vivo, sobre plantas e animais exóticos. Ou (aqui a esperança era ainda mais secreta), de que se iria assistir a um cenário de ficção científica, com enredos improváveis ou impensáveis, protagonizados por "não humanos" que, mesmo sem protagonizarem nenhum enredo no sentido terreno do termo, revelariam o sentido da vida, os desígnios últimos do Deus (ou Deuses) da Criação. Era lícito imaginar fosse o que fosse: homnídeos macacoides e outros, temerosos da noite, porventura evoluídos a partir de ramos estéreis da grande árvore genealógica que, na Terra, rejeitou para fora do reino dos eleitos o nearthentalis e o cro-magnon, incapazes de olhar para dentro de si mesmos, e para fora, para o alto, e descobrir a atracção sublime das Estrelas; humanoides parentes (ou imigrados?) de gnomos, elfos, os blemmyae ressuscitados por Sheakespear, entes de pé-de-cabra, cinocéfalos que respiram fogo, ou astomi, sem boca, cheiradores de odores; bípedes com cornos ou unicornes, parcas, lobisomens, valquírias, bruxas nojentas como baratas voadoras voando em vassouras saídas da retorta dalgum alquimista em desespero de causa; querubins, semideuses menores, romanos ou gregos; deídes arqueológicas votadas ao desprezo no Egipto ou na Pérsia; tágides e sereias com que em tempos idos se recompensavam (ou se perdiam...) guerreiros e navegantes; nereides, ciclopes da Odisseia e da Eneida, serafins, diabos subalternos trabalhando por conta própria, a despontar para o pensamento abstracto e já congeminando dramas de estarrecer, na terra e no mar; criaturas outramente racionais ou infraracionais, de estruturas etéreas, quem sabe se anjos, arcanjos ou demónios às ordens de outros Deuses e de outros Destinos e - porque não? -, bichos menores ganhando foros de cidadania no panorama impar dos "sem alma". Porém, uma vez desenrolados tais acontecimentos, projectados tais cenários (ou cenários díspares, semelhantes ou dissemelhantes do que foi imaginado ou inimaginado), seria de continuar a chamar-lhes ficção científica, ou ficção tout court, olhando-os nos visores do planeta Terra?
Valia a pena esperar, que a espera era de ver o nunca visto.
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em A Febre do Ouro, pág 202

quarta-feira, 2 de julho de 2014

SINAIS DE "GENTE"


Passado o pasmo e o frenesim primevo de ver-se em chão seguro, o sábio das coisas vivas tomou decididamente a dianteira, comandando as operações e encaminhando o grupo direito a uma das grandes árvores da vertente interior da ravina. E ao contrário do que alguns supunham, o capitão deixou-se guiar pelo sábio e foi atrás dele. Ficou a ideia de que se arrependera do anterior dito e que assim se penitenciava da sua ofensa.
Quando chegaram perto, pararam todos, soltando grandes admirações, ante a beleza escultural da árvore e o seu porte dominador e altivo. Ela tinha qualquer coisa de fascinante. Teria uns bons sessenta metros de altura, o tronco liso e duríssimo, onde os golpes de catana pouco penetravam, um enormíssimo diâmetro todo igual de baixo a cima e uma copa farta, pequena e redonda que figurava um cogumelo de linhas geométricas, impenetrável aos raios de sol e à claridade que vinha do alto, tão espesso era o emaranhado da folhagem. Uma coisa que muito admirou o biologista foi a postura dos ramos, todos eles saindo lateralmente do topo do tronco, tal qual os raios da roda duma carroça, formando-se a folhagem em abóbada quase perfeita, no interior da copa. Aí se deteve uns momentos, fazendo um esboço da árvore e tomando notas. Os outros exploradores avançaram até ao alto duma colina próxima, donde se descortinava o resto da paisagem. A impressão deixada por aquele colosso de linhas esculturais, mantinha-se na mente, mas era preciso avançar. De resto, ainda antes do desembarque, já alguns se sentiam fascinados pelas suas silhuetas destacando-se na mata dos rochedos costeiros do promontório aonde haviam chegado.
Mal arribaram à crista do morro, todos se estacaram petrificados de emoção, os queixos bicudos erguidos temendo e desafiando o silêncio daqueles ermos, como figurinhas de barro cheirando a vertigem do tempo e a singularidade insólita daquele momento único. Daí se desfrutava uma vista impressionante que fez desenfrear a pulsação dos presentes. Uma enorme planície quase completamente desbravada e calva, fazendo a espaços lembrar o restolho duma seara, e centenas, senão milhares!, de árvores dominadoras e esculturais salpicadas ao acaso pelo espaço aberto, até perder-se numas outras longínquas colinas cobertas de verde-malaquite espesso. Para a direita, o rio. Para além do rio, delimitando a margem mais afastada, uma escarpa quase a pique, marcando o fim do promontório enorme, que só se desvanecia no gris das serras.
- Aqui temos o primeiro sinal de gente! - exclamou o biólogo, contendo a emoção.
em A FEBRE DO OURO, pág 39

quinta-feira, 1 de maio de 2014

4 bolas de prata


O caso era intrincado demais. Não era possível saber de que eram feitas as esferas, nem para que serviam.                              
- Não me admirava nada... que fossem de prata...
- Quê?... - gritou o comandante. - Prata!?...
Para o geólogo dificilmente seria outra coisa: crómio, aço inoxidável, ou alumínio, por exemplo... já que esse metal nem era conhecido dos físicos (ou dos alquimistas?) do planeta da e de Eridanus. Por essas alturas, conheciam ainda menos elementos que os sessenta com que o sábio Mendlief estabeleceu a famosa tábua que na Terra traz o seu nome. Tampouco o mineralogista poderia referir a útil manganina, ou a brilhante alpaca - a suprema mistificação da prata!... -, essa especiosa liga de cobre, zinco e níquel, com que (muito presumivelmente... se me permitem...), um dia... uma certa burguesia do planeta, pretenderá iludir com terrinas e garfos... a sua condição rasca, mediana!...
- Prata?! - o capitão deu um salto, meio esgazeado - É isso! Prata!... - berrou ele. E depois virando-se repentinamente para o cartógrafo. - A estrada de prata... lembra-se?
Um súbito mas diferenciado frenesim invadiu os membros do grupo. Não era para menos, a situação em que se encontravam, pese embora a rudeza e a ignorância dos marujos (e do próprio capitão), gente de mais ferro e fogo do que de fascínio pelo etéreo, pelo maravilhoso desconhecido de mundos de outro mundo.
Avançaram, pois, agora sem tantas cautelas, hipnotizados pela ideia da prata, seus desígnios e proventos. Havia que dar-lhe prioridade absoluta. O cartógrafo teve a sensação de sentir uma súbita luva de veludo a passar-lhe pela cara, mas logo - científica e filosoficamente - considerou que isso era apenas um frémito de emoção a perpassar-lhe pelos nervos superexcitados, ante a visão estonteante dum quadro irreal. Para que quereria, aquela gente, quatro bolas de prata, em cima duma árvore? Mas...seriam mesmo de prata, tão resplandecentes, sem sinais de oxidação... ao ar livre?... Que estaria por detrás de tudo aquilo? Fustigavam-lhe a cabeça, uma enormidade de pensamentos, todos ao mesmo tempo, entrelaçando-se, revirando-se, sobrepondo-se em turbilhão e, do caos organizado da resposta, pensou nos deuses: o supremo mítico, por excelência. Pôs a hipótese dum templo. Mas porquê a prata - se de prata se tratasse... - e não o ouro reluzente que ofusca o olhar, como o Deus-Sol?... E porquê quatro esferas? Porque não... uma só?... Uma só divindade, a que presidia aos destinos do Mundo onde nascera? Seriam deuses menores... se é que de deuses se tratava?...

domingo, 5 de janeiro de 2014

CALAFATES


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"O horizonte está nos olhos e não na realidade"                                    
Angel Ganivert
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O resto da tarde foi de preparação para a exploração nocturna.
Os calafates de bordo - que acumulavam com as funções de carpinteiros - foram os que mais trabalho tiveram: trabalho humilde, de carpinteiro, de serrar tábuas e pregar pregos, mas tão importante, na circunstância, como a ciência do grande pensador que foi o sábio que primeiro mediu a dimensão do Mundo - embora errando profundamente, mas abrindo um espaço de crítica que haveria de revolucionar o pensamento das gentes.
Consultado o sábio das pedras - conhecedor das técnicas das minas e dos metais - o capitão-mor ordenou que fossem feitos artefactos tão rudimentares mas tão indispensáveis para a colheita das pepitas de ouro, quanto o são as pás de madeira, os crivos com que passar a pente fino as areias do rio e mais uns niveladores para rasar as ditas.
Foi uma grande azáfama. Um enorme frenesim. A cada prego pregado, a cada tábua serrada, os navegantes associavam a visão antecipada de um maná feito de ouro reluzente que lhes haveria de dar a fortuna e o lazer deleitoso dos ricos e dos reis.
Tudo isto os nautas pensavam, na sua grande confusão de pensar e imaginar, na crença que tomavam por certa, embora ao capitão não saísse do espírito a visão que tivera horas antes, sob o sol escaldante da ilha.
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em A Febre do Ouro, pág 112

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

A PEQUENA SONDA


- E se alguma coisa acontecer, não prevista... que seja presenciada pelos... pelos nativos e que esteja fora do seu entendimento... não será tido, por eles, como obra de deuses? Estou a lembrar-me, e já que você citou uma série de manuscritos antigos, dos textos do Kattrasaritsagar, da cidade celeste de Hiranyapura donde eram enviados veículos para a Terra, das áureas e argênteas rathas voadoras, tripuladas por criaturas extraterrestres que vinham estudar os humanos, dos Heloins bíblicos, do famoso carro de David... ou da barca celeste de Vixvakarman... para já não falar do... do ... deixe ver se eu consigo soletrar este nome bizarro... tão comprido... como a sua própria antiguidade... Sa-mar-ran-ga-na-su- -tra-dhar, onde se descreve como Brama construía carros voadores... Não será a S. Gabriel, para eles, os... os nativos... se for avistada, bem entendido!... qualquer coisa como isto?...
- Esperamos bem que não aconteça nada não previsto... A pequena sonda que descerá no planeta, também não tem poderes nenhuns para interferir seja de que maneira for. Nem deverá ser vista. Operará apenas pela noite... se houver gente. E mesmo que eles tenham qualquer sistema de iluminação, como os existentes em certas cidades da Terra antes da descoberta da electricidade, esse sistema deverá ser muito circunscrito. A sonda não tem luzes nem holofotes... e não será visível! Não se ponha a imaginar um desses discos voadores cheios de luzes que, de quando em quando, ainda são vistos por ignorantes ou, como no passado, quando serviam de pretexto para influenciar o Congresso Americano ou os parlamentares europeus, tendo em vista o desenvolvimento de novas armas...
- Não, não! - disse a gorducha, com um esgar molestado, insinuando a refutação dalgum tele-espectador que tivesse percebido que o velho o tomava por parvo.
- A sonda não precisa de luzes para ver o caminho... - continuou o sábio, em tom paternal, mas simples. - Os seus sensores são capazes de distinguir os acidentes do terreno ou da paisagem, com uma precisão milimétrica... Os eridanus não darão por nada!...
em A FEBRE DO OURO, edição Litoral, 2011, pág 197